Portugal acompanhou através da recente introdução de um novo quadro regulador uma vaga de reformas legislativas nacionais que desde a última década procurou combater o jogo ilegal e a fraude associada, perante a rápida expansão de oferta de serviços e operadores de jogo e apostas num contexto económico particularmente crítico.
Porém, esta súbita evolução da indústria continua longe de ser acompanhada por uma avaliação consciente das autoridades competentes sobre os seus potenciais efeitos positivos e riscos associados em matéria de proteção de consumidores, redução de jogo ilegal, aumento das receitas fiscais e demais fatores críticos.
Relatórios do Conselho da Europa e da EUROPOL sublinham recorrentemente os perigos do jogo online ou de base territorial no branqueamento de capitais, estimando-se que só a economia das apostas desportivas lave cerca de 140 biliões de dólares ao ano.
O jogo, seja legal ou – em muitos casos – ilegal, sempre foi atrativo ao crime organizado e desempenhou um papel relevante na ascensão das principais redes de criminalidade organizada transnacional, desde os carteis sul-americanos às máfias italianas e de leste, passando pelas tríades e a Yakuza.
Ora, sendo esta uma realidade com raízes históricas conhecidas, com infiltrações em centros globais de jogo de base territorial como Las Vegas e Macau, a progressiva legalização e abertura de novos canais, com fluxos maciços de capitais e um quadro regulador frágil, incipiente ou até inexistente, oferece novos territórios e oportunidades para o branqueamento de capitais florescer e se expandir a infiltração criminosa.
Acresce que as autoridades reguladoras tendem a concentrar os seus recursos no combate ao jogo ilegal e ao enriquecimento ilícito, e não tanto ao branqueamento de capitais, o qual não é visto pelos órgãos de investigação e ação penal como uma prioridade pois preferem seguir os criminosos mais do que a sua carteira de ativos.
Este contexto agrava-se perante a escassez de meios, competências técnicas e mecanismos céleres e eficientes de troca de informações transnacionais, bem como da ausência de vitimas ou denúncias, nomeadamente quando se tratam de apostas em operadores ilegais que frequentemente laboram num contexto de opacidade e pactos de silêncio.
Aliás, por definição um apostador com o propósito de branquear capitais assume que irá perder regularmente uma percentagem das suas apostas, tornando-se por isso um cliente atraente para os operadores, cujo interesse em reportar transações suspeitas ou implementar mecanismos exaustivos de controlo “Know Your Customer” e “Know Your Winner” é diminuto pois a sua principal prioridade é lutar por uma quota de mercado, mesmo em jurisdições fortemente reguladas.
Logo, é expectável que a generalidade dos operadores licenciados se limite a cumprir com os requisitos elementares estabelecidos na lei e tire o máximo proveito das suas debilidades, pois tem apurada noção que ir mais além e aplicar procedimentos mais rigorosos distorce a concorrência em seu desfavor uma vez que o mais natural será o cliente mudar-se para um rival que não aplique tais procedimentos.
Este é particularmente o caso quando as autoridades reguladoras falham ou afrouxam a implementação de medidas de “due diligence” e idoneidade para impedir que o branqueamento de capitais tenha lugar em salas de jogo ou em sites de operadores licenciados, tornando praticamente impossível o rasto do capital inicial proveniente de proveitos criminosos que se dispersa por múltiplas contas, jurisdições e apostadores a soldo, nomeadamente quando na generalidade dos mercados regulados a aposta em operadores ilegais não configura um crime.
Um cenário que hoje assume outros contornos, num mercado em que o jogo ilegal representa 82% do mercado global e a sua taxa de retorno média (payout) é de 96,2%. Onde mais de 80% dos operadores se localizam em países considerados como paraísos de jogo e paraísos fiscais. Isto é, de acordo com a OCDE, jurisdições que reúnem os seguintes três critérios:
• Ausência de impostos ou impostos nominais;
• Falta de transparência no sistema financeiro;
• Falta de troca de informações fiscais.
A generalidade destas jurisdições apresentam “deficiências estratégicas persistentes” e encontram-se classificadas nas listas negras e avaliadas com maiores vulnerabilidades ao branqueamento de capitais nos principais relatórios de referência regularmente publicados pelo G20, GAFI e FMI.
Torna-se assim extremamente complexo seguir os fluxos financeiros depositados em contas destas jurisdições – onde o peso do mercado do jogo no PIB é substancial – antes de serem transferidos para a conta de um prestador de serviços de jogo e posteriormente canalizados em prémios para uma conta bancária verdadeiramente escrutinada, completando assim o ciclo do branqueamento.
A flexibilidade e a confidencialidade que a legislação nestas paragens assegura a quem quer abrir um negócio ou criar uma conta bancária transforma o jogo numa ferramenta ideal para branqueamento de proveitos de atividades criminosas.
Antígua e Barbuda, Costa Rica, Cagayan (Filipinas), Alderney (Guernsey), Malta e Gibraltar são, entre outras, jurisdições que acolhem a generalidade dos operadores e suas plataformas de jogo online, nomeadamente as empresas globais com maior volume de negócios e licenças em vários países europeus.
No combate a este desafio que corrói a industria do jogo, a ordem pública e a proteção dos consumidores, o Estado – na sua condição de legislador e regulador – e os operadores licenciados assumem papéis preponderantes.
O Estado pela capacidade em legislar e aplicar um quadro regulador que contenha disposições sobre os fatores de risco de branqueamento de capitais. Desde as opções políticas em relação à prioridade no combate a este fenómeno e ao jogo ilegal – entre elas a questão da liquidez internacional -, como nas medidas específicas com impacto significativo como sejam os tipos de apostas autorizadas, nomeadamente as de maior risco (contra-aposta e apostas ao vivo); a limitação sobre os níveis de payout, sobre o volume de apostas, o tempo de jogo e os métodos de pagamento autorizados; bem como os procedimentos de identificação de clientes e idoneidade dos operadores.
No seu papel de regulador, assegurar que a legislação de branqueamento de capitais se aplica a toda a indústria do jogo, através de uma Unidade de Informação Financeira habilitada a cruzar a informação proveniente de denúncias de operações suspeitas, a nível nacional e internacional, e a conduzir de forma célere os processos de inquérito supervenientes, bem como mobilizar as instituições bancárias a serem diligentes neste domínio quando em causa estão transações e apostas suspeitas.
No caso dos operadores, na implementação de mecanismos de controlo de acordo com a legislação dos Estados onde operam, pois, considerando o que acima se expôs sobre o potencial de atração de clientes com um perfil de consumo de jogo associado a branqueamento de capitais, existe uma grande diferença entre países onde estes mecanismos são deixados ao critério do operador e aqueles onde se tratam de responsabilidades conferidas no ordenamento jurídico e devidamente sancionadas em caso de incumprimento.
Deveres de diligência e idoneidade, como o cruzamento dos dados das contas bancárias com os detalhes da conta individual de apostador; a verificação regular da idade, identidade de clientes e apostadores vencedores alinhada com as referências estabelecidas na 4.ª Diretiva de prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, ou a instrução e registo completo de alertas e denúncias de transações suspeitas são fatores críticos de segurança.
A existência de operadores que aceitam múltiplas contas bancárias por jogador/apostador, ou que aceitam contas em nome de pessoas coletivas, e não recusam contas bancárias sediadas em paraísos fiscais identificados nas listas do GAFI configuram vulnerabilidades acrescidas, que muitas vezes se juntam à dificuldade em intentar ações judiciais neste âmbito.
Com efeito, se é difícil criticar operadores, mesmo quando rigorosamente vigiados, pela ausência de uma atitude de responsabilidade social e corporativa proativa para com este assunto perante um mercado que se pretende competitivo, também as autoridades reguladoras tiveram num curto espaço de tempo de levar a cabo um conjunto de procedimentos essenciais para implementar um quadro legal que alterou substancialmente o panorama vigente, onde se incluiu a emissão de licenças, encontrando-se necessariamente a colmatar lacunas sobre um mercado altamente sofisticado, complexo e em permanente mudança substancialmente diferente e com novas ameaças em relação à estabilidade e previsibilidade do modelo monopolista que vigorou durante décadas.
Florescem assim, nos interstícios das lacunas deste sistema, as redes organizadas que se profissionalizaram em capitalizar a gestão de risco e todas as oportunidades nas diversas facetas de crime associado à indústria do jogo.
Portugal irá aprovar dentro em breve um pacote legislativo nesta matéria, na sequência de recomendações do Grupo de Ação Financeira (GAFI), transpondo para o ordenamento jurídico interno a 4.ª Diretiva de prevenção de branqueamento de capitais – Diretiva (UE) n.º 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.
Apesar da indústria do jogo já se encontrar sujeita às disposições da anterior diretiva, na alteração introduzida à Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, pela Lei n.º 62/2015 de 24 de junho, bem como nas obrigações das entidades exploradoras licenciadas de acordo com o novo regime regulador do mercado de jogo e apostas desportivas, a nova Diretiva prevê que os prestadores de serviços de jogos ficam ainda obrigados a aplicar medidas de diligência quanto à clientela no momento da recolha de prémios e/ou no momento da colocação de apostas no montante igual ou superior a €2.000,00, independentemente de a transação ser efetuada através de uma ou mais operações.
Face ao exposto não se espera, portanto, um retrocesso nesta matéria, dado que a 4.ª Diretiva prevê, com exceção dos casinos, e após uma avaliação do risco adequada, aos Estados-Membros poderem decidir isentar total ou parcialmente os prestadores de determinados serviços de jogo das disposições nacionais de transposição desta Diretiva, com base no risco comprovadamente baixo que a natureza e a escala das operações de tais serviços representam.
Tanto mais que de acordo com a última avaliação disponível do Grupo de Ação Financeira ao sistema nacional de prevenção de branqueamento de capitais terem sido evidenciadas preocupações na implementação das suas recomendações no que respeita ao número reduzido de declarações de operações suspeitas.
Afigura-se, pois, cada vez mais crucial para conseguir minimizar os riscos crescentes de branqueamento de capitais associado à indústria do jogo, levar a cabo uma abordagem holística que não se confine às tradicionais formalidades administrativas de combate ao jogo ilegal, mas seja também capaz de assimilar as boas práticas na monitorização e controlo efetivo da atividade licenciada, com as competências e “expertise” necessárias para o efeito, fomentando um quadro que favoreça uma intensa cooperação nacional e internacional entre as partes interessadas e deste modo transfira e aumente o risco para o lado da criminalidade, diminuindo a perceção de impunidade.
A Ricardina