Portugal: “As raspadinhas eram oferecidas de forma quase imposta nos correios. Falta muito esta consciência de que o jogo é perigoso”

Nos últimos anos, o mundo dos casinos online e das apostas desportivas não tem parado de crescer, fazendo aumentar os casos de dependência. Só no ano passado, foram feitos...

Nos últimos anos, o mundo dos casinos online e das apostas desportivas não tem parado de crescer, fazendo aumentar os casos de dependência. Só no ano passado, foram feitos em Portugal mais de 215 mil pedidos de auto-exclusão por parte de jogadores que não conseguem controlar o vício e que pediram para lhes ser barrada a entrada em todas as casas de jogo. Carlos Melo, de 36 anos, é um deles. No mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, conta como a dependência quase lhe destruiu a vida. Ouça também as explicações da psiquiatra Inês Homem de Melo

Na primeira vez que foi a um casino, Carlos Melo “estoirou” numa noite todo o dinheiro que tinha poupado para uma viagem. Nesse dia, percebeu que podia ter uma compulsão e decidiu não mais voltar a entrar numa casa de jogo. Mas isso não o protegeu. Quando ‘explodiram’ em Portugal as apostas desportivas online ficou rapidamente viciado.

“Ao início, apostava sobretudo pela adrenalina e com a ilusão de poder ficar milionário. Depois, era simplesmente um vício. Não conseguia dormir sem pensar em jogar, perdesse ou ganhasse.
Todos os dias pensava naquilo, a toda a hora. A minha vida era só jogar, jogar e arranjar maneira de conseguir dinheiro para jogar mais”, conta no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.

A licenciatura ficou pelo caminho e todas as outras dimensões da vida passaram para segundo plano. Não conseguia parar de apostar, nem sequer quando estava a conduzir. Mentia aos pais e aos amigos, inventando mil desculpas para lhe emprestarem mais dinheiro e, aos poucos, viu-se enredado numa espiral de dívidas, de que já não tinha como livrar-se.

“Não tinha mais a quem pedir dinheiro, não tinha mais desculpas que pudesse dar. Ninguém acreditava em mim. Caí em descrédito total. Senti-me completamente sozinho e basicamente saí de casa rumo ao desconhecido e sem dizer para onde ia. Queria desaparecer”, recorda.

Por sorte, no momento em que pensava em pôr fim à vida, encontrou um amigo que se apercebeu da situação e acabou por levá-lo às urgências de psiquiatria, iniciando então um longo caminho de recuperação.

Não aposta há mais de dois anos, mas teme que um dia possa vir a sentir a mesma tentação de jogar. Por isso, fez um pedido de auto-exclusão em todas as plataformas de jogo online, ficando, assim, impossibilitado de aceder às apostas.

Só no ano passado foram feitos 215 mil pedidos de auto-exclusão em Portugal – um número que não tem parado de crescer nos últimos anos, acompanhando o boom das casas de apostas e casinos online.

Inês Homem de Melo, psiquiatra do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), tem assistido ao aumento de casos de adicção e lamenta a falta de prevenção e de consciencialização para os riscos.

“Os jogadores de futebol usam o nome das casas de apostas nas suas t shirts. As raspadinhas são vendidas em todo lado. Até há pouco tempo, eram oferecidas de forma quase a imposta nos correios. Falta muito esta consciência de que o jogo é perigoso”, critica.

Incapacidade de parar

O jogo patológico foi a primeira dependência comportamental a ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, que a classifica como uma perturbação mental. Embora não envolva o uso de nenhuma substância, os sintomas e manifestações do vício do jogo são idênticos às dependências de substâncias como o álcool ou a cocaína.

“O que se passa no cérebro de uma pessoa com vício do jogo é exatamente igual ao que se passa no cérebro de alguém com dependência de substâncias. O curso da doença e os sintomas são em tudo muito semelhantes. Se trocarmos a palavra cocaína por jogo, tudo é igual”, frisa a especialista.

Tal como na dependência de substâncias, o jogo patológico caracteriza-se por uma incapacidade de parar, por maiores que sejam os danos provocados, causando uma adicção que faz descurar todas as outras dimensões da vida. Pelo mesmo efeito de tolerância que acontece no álcool e na droga, o jogador precisa de fazer apostas cada vez maiores para obter as mesmas sensações. E quando não joga tem sintomas de abstinência “quase iguais aos da cocaína”, inclusivamente físicos.

“Pode tremer, pode ficar enjoado, pode vomitar, pode ficar muito irritável e com insónias”, exemplifica Inês Homem de Melo.

Pedir dinheiro e não ajuda

No episódio, a psiquiatra fala ainda sobre as “distorções cognitivas” que são características dos jogadores patológicos, como a chamada “falácia do resgate” – quando o jogador pensa que jogar é a única forma de recuperar o dinheiro que perdeu.

“É esta falácia que mantém as pessoas viciadas e sem procurar tratamento. Se a pessoa acha que é jogando que vai recuperar o que perdeu então acha que não tem um problema de saúde, mas um problema financeiro. Acha que se tiver dinheiro, vai jogar e resolver o seu problema. Portanto, as pessoas com vício do jogo não procuram ajuda; procuram dinheiro”, explica.

É por essa razão que, ao contrário do que acontece noutras dependências, é muito raro um jogador patológico procurar tratamento por si próprio. Os que aceitam ajuda são quase sempre levados por amigos ou familiares, salienta a psiquiatra, sublinhando a importância de as pessoas mais próximas estarem atentas aos sinais de alerta e agirem, se preciso for “traindo” a amizade.

“Às vezes os amigos pensam: ‘Não sou eu que vou armar a bronca, que vou fazer queixa aos pais ou dizer à mulher que ele me anda a pedir dinheiro emprestado’. Mas a resposta é: “Sim, se és um amigo a sério é isso que tens de fazer”, apela.

Fonte: SIC Notícias

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