Há jogos que nunca existiram, clubes sequestrados e resultados forjados na bancada. As redes internacionais de manipulação de apostas alastram pelas divisões secundárias do futebol português. O relatório mais recente da Federbet, a publicar em setembro, lança suspeitas sobre mais cinco partidas — duas delas na Primeira Liga. Ninguém está a salvo. Nem se sabe como travar a ameaça.
Um orifício no muro do topo do Estádio da Tapadinha, em Lisboa, permite espreitar para o relvado daquele que já foi um dos recintos desportivos mais emblemáticos da capital. Mas o campo do Atlético Clube de Portugal, um clube histórico — dos 15 com mais participações na Primeira Liga —, exibe claros vestígios de decomposição: as paredes descascadas, ervas a nascer nas bancadas e painéis publicitários em derrocada. “É como se um vírus tivesse entrado pelo portão e consumido lentamente o corpo do clube”, diz José, um adepto que leva o filho aos treinos. Uma figura de estilo que não foge muito dos factos: em 2013, a antiga direção do Atlético, liderada por Almeida Antunes, vendeu 70% da SAD à Anping Football Club Limited, uma empresa sediada em Hong Kong e propriedade do chinês Mao Xiaodong (conhecido no Ocidente como Eric Mao), já indiciado pela UEFA por fortes suspeitas de corrupção na combinação de jogos para apostas. O preço: 175 mil euros, dos quais apenas 50 mil foram pagos. Desde então, o Atlético desceu duas divisões, desmembrou-se entre SAD e clube (tem duas equipas, uma da SAD e outra do clube), perdeu sócios, enterrou-se em dívidas e foi investigado por suspeitas de manipulação de resultados.
Na bancada, junto à secretaria, o presidente recém-eleito, Ricardo Delgado, de 38 anos, olha em redor na tentativa de encontrar uma solução para salvar a instituição. “O Atlético foi sequestrado tanto financeiramente, com várias contas por pagar, como desportivamente, porque o regulamento não permite que a equipa do clube [na 2ª divisão distrital] ultrapasse a da SAD [duas ligas acima, na Divisão de Honra da Associação de Futebol de Lisboa]. Nós só queremos distância em relação aos investidores e restituir a honra ao clube”, diz. Uma distância que é facilmente comprovada na secretaria — os gestores da SAD foram expulsos do estádio, não há números de telefone e mesmo a correspondência, com muitas dívidas, é devolvida à procedência.
Em maio de 2016, Armando Hipólito, acabado de ser empossado como presidente, perdeu a paciência e fechou a cadeado as instalações da Tapadinha usadas por Xialong “Bruce” Ji e Xinxin “Nancy” Cao, os representantes de Eric Mao em Alcântara. “O ‘Bruce’ é um homem sem qualquer dignidade, sem escrúpulos”, acusa Hipólito. “Pressionava os treinadores para colocar em campo os jogadores que queria e chegou a forçar a entrada no balneário. Nas reuniões, olhava para o teto, desprezando completamente o que lhe dizíamos. Nunca deu um cêntimo para o aluguer das instalações e tinha à porta um carro alugado que nunca pagou. Tivemos de ligar à empresa para vir cá buscar a viatura.” Mao raramente foi visto pela Tapadinha. “Nancy” deixou de aparecer em novembro de 2015. “Bruce” Ji acabou por se tornar o único rosto asiático da SAD. Envolveu-se em muitos conflitos: acabou a primeira época aos empurrões com o treinador Jorge Simão, que viria a orientar o Sporting de Braga, e levou mesmo uma bastonada na cabeça de Fernando Piedade, à época vice-presidente do clube. “Mas fizeram as pazes e hoje são amigos”, diz um ex-dirigente. Hipólito afirma que o chinês nunca ostentou uma vida faustosa e que mandava vir pizzas quase todos os dias para o seu escritório.
“Não podemos pensar nestas pessoas como elementos da máfia clássica, bem vestidos, com bons carros e em restaurantes caros. Muitos destes tipos, e este deve ser mais um caso, são jogadores compulsivos, arrastados para redes internacionais de manipulação de resultados. Todo o dinheiro que ganham nos jogos que combinam acabam por gastá-lo em apostas normais”, diz o italiano Francesco Baranca, secretário-geral da Federbet, uma organização que monitoriza as apostas desportivas online e luta contra os jogos combinados.
Baranca foi dos primeiros a alertar para os perigos do investimento chinês no Atlético, mesmo antes de a UEFA, em 2014, ter enviado às autoridades desportivas portuguesas um documento secreto que denunciava os antecedentes de jogos arranjados por Eric Mao na Letónia e na Estónia e as suas prováveis ligações a Wilson Raj Perumal, um antigo cabecilha do Sindicato de Singapura — a mais prolífera organização de fraude em apostas desportivas —, que viciou largas centenas de partidas em todo o mundo. A carta acabou por ser revelada no Football Leaks. “Eric Mao é uma personagem suspeita com ligações próximas a jogos combinados. Ele é CEO da Anping Football Club Limited e dono do Beijing Glory FC e é também suspeito de manter negócios na Estónia e na Letónia”, escreveu o Sistema de Deteção de Fraude nas Apostas (BFDS).
“As organizações criminosas atuam a partir de diferentes zonas do globo, com destaque para a Ásia, onde estão sinalizados alguns dos principais rostos da criminalidade associada à viciação de resultados e onde são detetados os mais elevados volumes de apostas” diz Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF). “Estas organizações procuram intermediários nos países em que querem atuar, sejam agentes, dirigentes, árbitros ou jogadores. Pretendem construir parcerias e criar relações de confiança para garantir como resultado final a manipulação dentro de campo.” Segundo dirigentes do Atlético, a Anping de Mao chegou a Alcântara através do treinador Nelo Vingada, ex-jogador do clube, e do atleta guineense Almani Moreira, ex-Boavista e que viria a representar o Atlético entre 2013 e 2015, ambos com passagens pela China.
De acordo com o “Asian Times”, jornal de Hong Kong, Mao ajudou Vingada a recuperar dinheiro quando o clube que então treinava, o Dalian Shide, colapsou devido à prisão e posterior morte do seu proprietário, Xu Ming, em consequência de um escândalo político. Como contrapartida, o técnico introduziu o chinês à direção do Atlético e assumiu a presidência da nova SAD no seu primeiro mês de vida. Confrontado com a ligação na sua recente apresentação como selecionador da Malásia, Vingada comentou: “Eu não tenho relação com Mao […]. O presidente do clube, e não Mao, perguntou-me se eu podia ajudar, devido à minha experiência na China. Eu aceitei porque tinha jogado no clube.” De qualquer das formas, ninguém, desde a direção do Atlético a Nelo Vingada, passando pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) ou pela polícia, se apercebeu do potencial fraudulento do acordo. “Existem diversos fatores que tornam as competições em Portugal vulneráveis à manipulação de resultados. Do lado dos clubes, as dificuldades financeiras, potenciadas por uma gestão irresponsável e pela dificuldade em obter financiamento por vias normais, facilitam o aparecimento de investidores que fazem depender os apoios concedidos ao envolvimento nestas práticas. Os clubes tornam-se reféns destas organizações criminosas. Do lado dos jogadores, quanto mais precária for a sua situação contratual, com salários em atraso, maior é a vulnerabilidade. Destacam-se ainda contextos de dependência, o vício no jogo e no álcool, por exemplo, que culminam no endividamento dos agentes desportivos”, explica Evangelista, que defende um maior rigor na identificação dos investidores estrangeiros.
“Defendemos que o regime jurídico das SAD deve merecer uma reflexão, por forma a tornar mais transparente a proveniência dos capitais e, consequentemente, a garantir um maior controlo e fiscalização.” Foi recentemente criada uma linha de denúncia anónima para jogadores aliciados para viciar resultados, gerida pelo SJPF e pela FPF, no âmbito do programa “Deixa-te de Joguinhos”.
Fonte: Tribuna Expresso
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