O futuro das operações do jogo só deverá ser decidido pelo próximo Chefe do Executivo, mas seria “impensável” não renovar a licença da SJM e da subconcessionária MGM, considera Bruno Beato Ascenção, em entrevista ao Jornal TRIBUNA DE MACAU.
Salientando que o modelo actual pode sempre ser alterado, entende que será uma “evolução natural” se os “junkets” passarem a ter o estatuto de operadores, porque “são eles que fazem funcionar os casinos” e pertencem a um segmento onde há hoje menos “opacidade”, embora continue a ser necessário reforçar a credibilidade. Por outro lado, o advogado sustenta que as “operadoras fizeram mais do que deviam”, lamentando, porém, que o Governo tenha perdido “uma oportunidade histórica” nos contratos com as concessionárias, ao não exigir padrões de qualidade ambiental mais elevados, o que reflecte uma “profunda ignorância” ou “desinteresse” por “algo tão importante para a saúde pública”
– Lionel Leong não revelou detalhes sobre o futuro das licenças de jogo, alegando que não queria ver outras jurisdições a copiar Macau. Qual é a sua opinião sobre esta decisão?
– A interpretação ao silêncio imposto pelas declarações de Lionel Leong tem de ser vista à luz do mandato do actual Chefe do Executivo. Ou seja, o fim deste mandato e início do próximo, sendo certo que Chui Sai On não se pode recandidatar. Também se tem de perceber quando é que as actuais concessões terminam. A concessão da SJM termina em 2020 e, consequentemente, o contrato da MGM como subconcessionária. Assim, em Março de 2020, estamos no terceiro mês do mandato do próximo Chefe do Executivo. O contrato da SJM tem uma duração de 18 anos e o artigo 13 número 1 da Lei do Jogo estipula que os contratos podem ter duração máxima de 20 anos. Há duas situações de prorrogação: a situação específica da SJM até aos 20 anos e a prorrogação especial que pode ser até ao limite de cinco anos. É preciso distinguir o caso da SJM das demais, porque estas terminam em 2022. Não faz sentido falar de negociação de contratos com todos, porque são casos diferentes, e terminam em alturas diferentes. Não vejo que o Governo Central queira entregar esse assunto ao actual Chefe do Executivo. Lionel Leong não dá detalhes, porque não há detalhes a dar. No limite, o que este Chefe do Executivo pode fazer, e faz sentido que o faça, é estender a actual concessão até aos 20 anos para que todas terminem ao mesmo tempo, relegando a decisão para o outro Executivo. Isto parece ser o mais plausível, mas não significa necessariamente que esses contratos sejam estendidos até 2022. Pode dar-se o caso de deixarem a concessão e subconcessão caducar, o que é impensável. Estamos a falar da SJM e do peso histórico e económico que tem em Macau, mas também já aconteceram coisas impensáveis que ninguém estava à espera. Pode deixar-se caducar a subconcessão da MGM. O que é curioso é que os últimos empreendimentos do COTAI a abrirem pertencem ambos às operadoras que têm o contrato mais perto do fim. Ninguém se mete nestes gastos avultadíssimos com projectos sem ter, talvez, uma garantia de que os contratos vão ser cumpridos. Fala-se da negociação dos contratos há mais de cinco anos, mas se existem de facto não acredito. Há quem diga também que é plausível, porque Lionel Leong está a iniciar a negociação para depois a concluir como Chefe do Executivo. Mas, como se diz em inglês é um “long shot”.
– É possível alguma alteração ao modelo existente?
– A alteração é sempre possível. A tendência do jogo em Macau é de que seja cada vez mais chinês e menos estrangeiro. Faz sentido olharmos para a história da China e para a forma como encaram o investimento estrangeiro, é sempre numa perspectiva a médio prazo. Passar a haver mais concessionárias, duvido. O que pode acontecer é uma maior participação, ou mais visível, de intervenientes do sector do jogo.
– Como assim?
– Os “junkets” passarem a ser operadoras. Como vão fazer isso, ainda está para se ver, mas é a evolução natural. Na prática, os “junkets” é que operam esta actividade económica no território. Tudo depende do “junket” e isso é o que faz Macau uma jurisdição diferente das outras. Eles é que são os verdadeiros operadores do jogo. São eles que fazem funcionar os casinos.
– Mas há problemas no sector dos “junkets”. Fala-se de falta de fiscalização, por exemplo.
– As coisas vão sendo feitas, mas ao ritmo de Macau. É óbvio que é um assunto com alguma sensibilidade, mas é uma parte fundamental do jogo e que vai sendo regulada da maneira possível, tanto pelos próprios intervenientes, como pelas entidades públicas, como a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ). Tem havido uma evolução favorável. Desde o início de 2012 até agora, já há uma prática instituída que permite dizer que há menos opacidade nesse sector. É dar tempo ao tempo para esse controlo ser implementado.
– Quais são as questões mais urgentes a resolver nesse campo e nas salas VIP?
– É preciso dar uma maior credibilidade a quem as opera. Simultaneamente, é preciso saber, até que ponto, as salas VIP (sempre operadas por “junkets”) deixam de ser salas para ser um casino, bem como qual é o modo de funcionamento entre as salas e os casinos. É preciso esclarecer isto, até para o exterior. Deixar de dar uma má impressão, de que é um mundo muito fechado e obscuro. O Governo, por parte do seu actual Secretário para a Economia e Finanças e do director da DICJ, tem feito para que isso aconteça.
– O sistema central contendo dados sobre as dívidas nas salas VIP é uma boa medida?
– Sim, desde que seja implementada.
– A Administração consegue controlar de forma eficiente o sector em geral?
– Nota-se de há 10 anos para cá, um controlo mais apertado, até porque tudo isto decorre da mudança de liderança do outro lado da fronteira e que obriga a que haja uma fiscalização mais apertada. A liderança é mais firme, conotada como não sendo muito amiga da indústria do jogo, por razões ideológicas, e isso reflecte-se na necessidade de as autoridades locais darem seguimento a esses entendimentos, veiculados de forma indirecta, mas bastante clara pelo Governo Central.
– Que balanço faz da legislação do jogo em vigor?
– O Macau de hoje em dia, não está reflectido na sua integralidade na lei. Há uma necessidade de esclarecer determinadas práticas e status quo, nomeadamente a questão das concessionárias e subconcessionárias, que a Lei do Jogo não prevê. A sua existência legal é duvidosa. Isso seria um bom começo, para esclarecer quem é que pode, se pode e em que condições pode operar um casino. Há outros assuntos, como os entendimentos. A DICJ declara que não há mais casinos aprovados, mas depois percebe-se que aprovou o licenciamento de um casino (Royal Dragon, de Chan Meng Kam). Denota uma certa contradição. Não digo que deveria constar da legislação, é uma componente à parte ligada à maneira como a DICJ comunica com o exterior e estabelece as regras para o mercado. Relativamente à legislação, há necessidade de clarificar em que condições pode haver casinos satélites. Começar com isso seria já um grande progresso.
– O território continua a ser associado à lavagem de dinheiro. Considera que tem havido uma melhoria?
– Continua a haver essa impressão, mas acho que há, sem sombra de dúvidas, uma intervenção mais forte da DICJ, relativamente ao branqueamento. As próprias operadoras têm os seus departamentos de “compliance” cada vez mais numerosos e com deveres de controlo mais apertados. Isso é uma necessidade que se tem desenvolvido e os próprios operadores têm procurado responder.
– Tendo em conta a competitividade regional o que é que se pode fazer para impulsionar o sector do jogo ou pelo menos garantir que não entre em declínio?
– O sector vai continuar a crescer e acho que a concorrência regional não será significativa, pela simples razão de que Macau pode perfeitamente sobreviver com o mercado chinês, que é cada vez maior e mais rico. O território tem a felicidade de ser o único sítio na China onde se pode jogar e, portanto, não há outra jurisdição que possa rivalizar com a RAEM. Isso é uma vantagem muito grande face ao Vietname ou Japão, por exemplo. Existe naturalmente a questão da “torneira”, saber se o Governo Central permite que as pessoas venham jogar e que age como um termóstato para impedir a criação de bolhas económicas. Para além disso, é usada de acordo com o que o Governo Central entende ser o projecto político e plano económico a seguir. Macau está mais sujeito a esse risco do que a concorrência com outros países.
– A componente não jogo representa mais dos 9% estipulados, percentagem que já satisfaz o Executivo…
– O não jogo tem de ser visto como acessório ao jogo. Não se pode cair na tentação de pensar que o não jogo vai crescer ao ponto de equivaler ao jogo. A postura de Lionel Leong é pragmática, mas se calhar dá a impressão de que não está em posição de decidir sobre a matéria. Provavelmente, é uma matéria a ser desenvolvida mais pormenorizadamente pelo próximo Executivo. É uma posição bastante conservadora.
– Mas ainda falta algum tempo …
– Para Macau e, de acordo com a mentalidade chinesa de planeamento, dois anos não são nada. Especialmente porque o próximo Chefe terá 10 anos para colocar em prática o que tiver em mente.
– As operadoras têm ido ao encontro das directivas oficiais? Há fricção entre as partes?
– As operadoras fizeram mais do que deviam. Se formos analisar o plano de investimentos, vemos que se excederam claramente ao proposto e não foram instadas a isso. A questão a colocar é: será que o Governo soube acompanhar essa evolução? Não. Não soube exigir determinados critérios de qualidade arquitectónica, por exemplo. Não soube criar as condições para que esses projectos pudessem beneficiar Macau da melhor maneira.
– A que se refere em concreto?
– A meu ver foi uma oportunidade histórica perdida para poder exigir às concessionárias na assinatura dos contratos determinados padrões de construção e de qualidade para que fossem mais ambientais e sustentáveis energeticamente, tivessem políticas de reciclagem ou autocarros eléctricos. Todos estes assuntos já foram abordados, não foram concretizados, mas ainda podem ser feitos no futuro. O Venetian emprega, salvo erro, 25 mil pessoas, o que é muito para um mercado como Macau. Não seria demais exigir a criação de creches, por exemplo. Se o Governo é incapaz de exigir isso, que pelo menos transfira uma parte do ónus decisório para os “resorts” para que cumpram determinados objectivos, que só beneficiam Macau e as suas gentes. É isso que faz falta e que espero sinceramente que a próxima ronda negocial inclua. O Executivo deve mostrar algum trabalho proactivo em relação algo tão actual e importante para a saúde pública como o ambiente. Há uma profunda ignorância ou, pior ainda, desinteresse. Espero sinceramente que essa inacção se mantiver, haja uma intervenção do Governo Central a esse nível. Em termos de saúde pública, o que acontece em Macau hoje em dia é muito grave.
– Fala apenas de transportes?
– De tudo. Do ar, dos resíduos, do desperdício da electricidade. Não haver legislação que obrigue a determinadas normas de construção é uma oportunidade falhada e inconcebível. É óbvio que há um lobby da construção muito forte, mas essas normas não iriam afectar em nada esse grupo, pelo contrário, é só uma maneira melhor de construir. Há alguma coisa que está a falhar. Quando olhamos para cidades vizinhas vemos que há uma preocupação ambiental muito mais presente no dia a dia do que aqui.
– E não é pela falta de recursos financeiros.
– Existem recursos e a dimensão da região permitiria facilmente criar condições. Porque é que não há uma rede pública de transportes eléctricos? Não acho que seja incompatível com os interesses económicos dos operadores de transportes públicos, antes pelo contrário, pode ser um negócio bom para todos.
– O Governo parece-lhe atento aos principais problemas de Macau?
– Não parece. Aparenta haver uma convicção de que pela inacção as coisas se vão resolver, mas há determinados assuntos que não podem ser resolvidos assim. É inconcebível que o Hospital das Ilhas não esteja concluído. A questão dos transportes, do Terminal da Taipa, do Metro Ligeiro e a maneira como se geriu este processo todo é uma vergonha. A derrapagem financeira que todos esses projectos representam e vão continuar a representar para o erário público é um assunto que deveria ser muito bem explicado pelo Executivo. O problema é que historicamente, não sei se é o legado português, a população conforma-se bastante e não levanta muitas ondas. De cada vez que penso nestes assuntos, questiono-me como é possível que não se faça mais.
– Algumas pastas sofreram avanços com a mudança de Secretários?
– Sem dúvida. Nota-se que o actual Secretário para os Transportes está empenhado em resolver os assuntos, mas há deles de tal maneira complexos e que, da maneira que foram iniciados, dificilmente serão resolvidos rapidamente. A expressão “pau que nasce torto, nunca mais se endireita” aplica-se. O Secretário não pode resolver tudo, infelizmente.
– Um dos problemas recorrentes é a habitação. Deveriam ser adoptadas medidas para controlar os preços?
– A regulação dos preços do arrendamento podia ser uma solução, mas não é uma solução a adoptar isoladamente. Tem de haver várias medidas tomadas em simultâneo, como não permitir um aumento além de determinado valor ou percentagem nas renovações dos contratos. Tributar apartamentos devolutos ajudaria a combater a especulação. Uma maior carga fiscal na transacção de imóveis também poderia ajudar. O imobiliário é uma questão difícil de resolver por parte do arrendatário, uma vez que o lobby da construção e proprietários é muito forte e, portanto, a não ser que o lobby caia em desgraça, o arrendatário sairá sempre desfavorecido.
– Uma situação como o “Pearl Horizon” cria descredibilização no mercado?
– Sim, cria uma descredibilização e leva potenciais investidores a pensar duas vezes antes de comprarem um imóvel em construção e cujo prazo está perto do fim. Cria uma perturbação no tráfego imobiliário ao qual o Governo devia prestar muita atenção, até porque, sendo o lobby muito forte, vai contra os seus interesses. A segurança jurídica tem de ser assegurada pelo Governo quando actua. Não estou dentro do assunto do “Pearl Horizon”, mas devem ser clarificadas situações em que as concessões caducaram não por inacção dos concessionários, mas por ordem dadas pela Administração. Aqui há uma questão de prova, muitas vezes difícil de assegurar, mas tudo isto causa incertezas e leva todos os intervenientes a pensar duas vezes e isso é mau para o Governo.
– A exclusão das empregadas domésticas e dos trabalhadores portadores de deficiência do salário mínimo vai contra a Lei Básica?
– Totalmente. Não se justifica a diferenciação de trabalhadores por categoria, é uma aberração e é claramente violadora da Lei Básica. Ainda por cima, falamos de uma profissão que é o sustento de uma sociedade. É impossível equacionar a vida de muitas pessoas que trabalham nas concessionárias e até no Governo sem a existência de empregadas domésticas, por isso excluí-las é uma visão retrógrada de uma parte do empresariado de Macau, que a meu ver ainda tem um peso significativo na elaboração de leis. A legalidade dessa lei parece-me duvidosa.
– Como é que avalia o desempenho do Governo na gestão dos trabalhadores não residentes (TNR)?
– O Governo podia fazer mais. A contratação de TNR é sempre muito complicada, sobretudo quando trabalhamos numa área em que lidamos com investidores estrangeiros. É notório que na RAEM há falta de trabalhadores qualificados e não qualificados para determinadas funções, vive-se uma situação de pleno emprego. Portanto, não falamos de situações de não-residentes a roubarem trabalho a residentes. A única maneira que concebo esse discurso populista é de alguém que, por um lado quer agradar às massas e por outro lado tem consciência de que as massas por não terem muitas qualificações, se sentem ameaçadas pela vinda de pessoas de fora. É uma situação que se vive por todo o mundo. O que o Governo pode e deve fazer é dar importância a esse grupo da população e fazer mais para impedir que esses discursos se tornem cada vez mais frequentes na Assembleia Legislativa, nomeadamente. Todos sabemos que sem esses trabalhadores a indústria do jogo não sobreviveria, mas é uma evidência que parece não ser repetida suficientemente.
– Nota a existência de rupturas na tradição do Direito de Macau?
– À medida que os intervenientes, da parte dos advogados e de quem aplica a lei na magistratura, se tornam cada vez mais chineses, há uma percepção do Direito mais próxima da mentalidade de Macau. Isso é inevitável. Há coisas boas e más.
– Como por exemplo?
– O facto de haver mais magistrados chineses ajuda a aplicar melhor o Direito aos factos que acontecem localmente, por serem mais conhecedores da realidade local, do ponto de vista cultural. Isso também ajuda o público a aceder aos tribunais e a perceber as decisões. Como se trata de magistrados novos, há talvez uma falta de experiência, que a meu ver seria necessário que fosse colmatada com uma maior quantidade de juízes portugueses com mais experiência, que pudessem ajudar na formação e no desempenho do cargo. Infelizmente, temos vindo a notar um decréscimo do número de magistrados portugueses e isso não é benéfico.
– O que acha do edifício provisório do tribunal?
– É uma aberração total e mais uma demonstração de que o Executivo não toma a questão da justiça com a seriedade que devia. Podia ter um campus judiciário que pudesse abarcar todos os tribunais e desse dignidade ao próprio tribunal em si e não tê-lo num prédio comercial, como o Tribunal Judicial de Base. É lamentável e não ajuda ao desempenho da profissão, principalmente se tivermos em conta que é um tribunal temporário. Porque é que não se construiu logo um tribunal que pudesse englobar tudo? Parece uma situação de compromisso que ainda está por explicar. Há uma clara indefinição sobre o que o Governo quer fazer em relação aos tribunais e isso entristece-me.
Fonte: Tribuna de Macau