Como é que os jogadores e os não jogadores percebem estes mecanismos de incitamento? Qual é o impacto no seu comportamento no jogo? Existem expectativas ou necessidades de alguma regulação destes mecanismos?
Nas últimas décadas, o mundo do jogo foi virado do avesso por numerosas transformações: desenvolvimento de novos canais de jogo (online) que complementam a oferta “tradicional” existente nos locais habituais de venda, o processo de democratização do jogo, em particular naquelas modalidades que antes eram menos preocupantes ou minoritárias, e sobretudo, desde os anos de 2010, o crescimento expressivo das apostas desportivas online, encorajado pelo desenvolvimento de plataformas e de jogadores que tiram o máximo proveito do potencial das tecnologias digitais.
Estas transformações têm sido acompanhadas pela evolução das práticas comerciais e pelo aparecimento ou desenvolvimento de mecanismos de fidelidade, bónus e recompensas monetárias, bem como por uma utilização cada vez maior da publicidade e da comunicação em todas as suas formas.
Na sequência de estudos internacionais e europeus que tentaram compreender o impacto destes desenvolvimentos no comportamento dos jogadores e os riscos potenciais que representam, a Autorité nationale des jeux (ANJ) solicitou à Harris Interactive que efetuasse a sua própria análise, fundamentada mais especificamente no contexto do jogo em França, na perceção que os jogadores têm da publicidade, nos bónus e recompensas financeiras e o seu impacto no seu comportamento no jogo.
Preâmbulo: Visão geral dos hábitos e evolução dos jogos
Quase metade da população (48%) joga, sobretudo impulsionada por jogos de raspadinha (93% dos jogadores) com uma percentagem significativa de apostadores na modalidade hípica ou de desportos (24%) e uma percentagem de jogos de apostas online que atinge 29% dos jogadores.
A tendência global é ascendente, quer em termos de frequência de jogo (até 23%), quer em termos de gastos (até 15%). Este aumento é mais acentuado entre os jogadores online e pode ser explicado, sobretudo para as pessoas envolvidas, por um desejo de escapar da Covid. Os jogadores são essencialmente motivados pelo facto de acreditarem que um dia poderão ganhar um grande prémio, bem como pela excitação de jogar.
Apesar da diversidade dos perfis e das especificidades de cada trajeto pessoal, notamos também um certo número de elementos transversais que se encontram mais ou menos entre todos os jogadores. O papel da família e dos amigos é particularmente importante logo no início do percurso dos jogadores: na grande maioria dos casos, é um ou mais membros da família os que introduzem os participantes no mundo das apostas e dos jogos de fortuna ou azar. Mais tarde, na trajetória do jogador, são os amigos e grupos de pares que podem encaminhá-los para certos jogos ou plataformas.
Mas é também o círculo familiar que se revela mais eficaz junto dos jogadores quando se trata de controlar, limitar ou mesmo abandonar a prática (com particular importância do cônjuge). Finalmente, notamos que, apesar das proibições, os primeiros contactos com o mundo do jogo ocorrem regularmente muito antes de atingirem a maioridade, quer graças à complacência de alguns operadores (por ex., tabacarias concessionárias de jogo), quer através de mecanismos que permitem contornar as regras (por ex., associação com um adulto).
Impacto da publicidade no comportamento dos jogadores
A atenção relativa prestada por todos os inquiridos à publicidade de qualquer tipo: 43% dizem estar atentos a ela.
Quando questionados sobre os anúncios de jogo, o nível de atenção é ainda mais baixo, com 28% a dizerem que estão atentos. Contudo, o nível de atenção aumenta com a frequência do jogo, e é ainda maior entre os jogadores online e os jogadores considerados “em risco”.
Em particular, as ofertas promocionais e recompensas monetárias encabeçam a lista de conteúdos que atraem a atenção dos jogadores nos anúncios (41%), seguidas de perto pela exposição a novos produtos no mercado (39%) e, mais abaixo na lista, os bónus de inscrição (24%).
Diversos elementos formais contribuem para tornar a comunicação sobre o jogo particularmente eficaz. Em primeiro lugar, os componentes técnicos de vídeo (cores vivas, narração de histórias, banda sonora…) que a comunicação dos atores deste universo parece dominar muito bem. A mobilização de um público jovem e urbano e a imaginação reforçam a identificação dos inquiridos com as personagens retratadas (inclusive no humor utilizado, na escolha do vocabulário, etc.), incorrendo assim no risco de parecerem visar um público inadequado (por vezes menor e em risco).
As mensagens fortes, quando se repercutem nos jogadores (“jogar permite-lhe experimentar o desporto mais intensamente”, “jogar significa aderir a uma comunidade de pares”…) são particularmente eficazes.
É de notar que a maioria dos jogadores critica espontaneamente as comunicações que prometem um retorno do investimento garantido ou regular. Eles consideram esta mensagem enganosa, e que incentiva o risco. Por último, promover grandes ganhos potenciais, é também uma alavanca eficaz para jogadores jovens.
O impacto dos anúncios no comportamento do jogo é bastante contraditório:
- Os não jogadores têm uma opinião mais clara e negativa, pois consideram que a publicidade encoraja a jogar mais frequentemente (62%) e a gastar mais (62%), encorajando os jogadores a assumir riscos em cerca de seis em cada dez casos (58%).
- Os jogadores mais conscientes são mais moderados nos seus comentários: um terço (34%) acredita que a publicidade pode encorajá-los a aprender sobre o jogo ou a diversificar as suas práticas de jogo (35%). Apenas um quarto dos jogadores acredita que a publicidade pode encorajá-los a jogar/gastar ainda mais.
Pessoas que se recordam de publicidade recente dos operadores concordam que estes anúncios representam um risco para os menores (70%). Muitos, principalmente os não jogadores, também acreditam que banalizam a prática do jogo (65%) e são por vezes enganosos em termos de ganhos esperados (59%). Em geral, os não jogadores são mais críticos em relação à publicidade.
O impacto dos anúncios sobre o comportamento no jogo foi confirmado nas entrevistas.
Os inquiridos admitem que os anúncios podem tê-los conduzido a um ou outro operador (embora na realidade, poucos parecem ter realmente descoberto a oferta legal através da publicidade; tomam consciência disso através do “boca a boca”, ou da pesquisa pessoal, a publicidade apenas os lembra da existência destes operadores). Subsequentemente, as repetidas solicitações atuam como ” incitamentos” que redirecionam os jogadores para a prática com jogadores recreativos ou moderados.
O fenómeno é ainda mais complexo para os jogadores de risco, que estão imersos num mundo que os lembra constantemente de si próprios (através de anúncios, da sua propagação no twitter, do conteúdo multimédia que consultam, incluindo programas de televisão sobre o mundo do desporto, etc., o que limita ainda mais a sua liberdade de escolha consciente ou inconscientemente.
Finalmente, e apesar da sua dificuldade em avaliar o impacto real destas comunicações sobre o seu comportamento no jogo, todos os jogadores envolvidos identificam um certo número de abusos que, na sua opinião, justificariam uma melhor regulamentação: a omnipresença da publicidade, a aparente falta de controlo sobre o seu conteúdo, a orientação desta para alvos vulneráveis (menores, populações desfavorecidas, etc.). Estes elementos são considerados como particularmente problemáticos no jogo online, devido à abundância de conteúdos, plataformas, e da exposição publicitária dos jogadores.
O impacto das recompensas monetárias no comportamento no jogo.
A utilização de bónus é um fenómeno generalizado entre os jogadores, uma vez que 52% já tiveram acesso a pelo menos um bónus/vantagem, a bónus de boas-vindas e outras pequenas somas de dinheiro “presente”.
O acesso a todos os tipos de vantagens é ainda mais pronunciado entre os jogadores online e especialmente entre os jogadores excessivos.
As potenciais derivas no comportamento em relação a estes bónus são um pouco mais visíveis: 43% dos jogadores que tiveram acesso aos mesmos concordam que estes bónus/vantagens podem encorajá-los a jogar mais vezes, e 38% a assumirem mais riscos.
O mecanismo de recompensa monetária é particularmente eficaz no início da prática de jogo (ofertas de inscrição, primeira aposta reembolsada, etc.): é frequentemente o elemento impulsionador, que elimina as últimas barreiras, os últimos receios de um futuro jogador ainda hesitante. Posteriormente, estes mecanismos encorajarão regularmente a prática, motivando os jogadores a jogar novamente em alturas em que tenham parado temporariamente de jogar (impulsionando as probabilidades, mas também pelos patrocínios e Freebets).
Os jogadores tendem espontaneamente a minimizar o impacto destes mecanismos no seu comportamento. No entanto, rapidamente notamos que além das posturas declarativas, estas ofertas de bónus e as recompensas financeiras têm um efeito real na trajetória do jogo (registo em plataformas, aumento do número de registos, etc.) e nas práticas de jogo (mais frequentes , maior e mais diversificado).
Conhecimento e perceção do quadro legal
O conhecimento da existência de programas de sensibilização são limitados (55%). Os jogadores, e mais particularmente os jogadores online/excessivos, são, no entanto, mais suscetíveis de estarem cientes da sua existência.
A grande maioria dos intervenientes considera que estes programas são importante (93%) ou mesmo indispensável (43%) quer sejam ou não jogadores.
Muitos lamentam a falta de comunicação/acção dos intervenientes no mercado para reduzir este risco; especialmente os não jogadores (74% julgam que os intervenientes no mercado não comunicam os riscos associados aos jogos de fortuna ou azar).
Mais atentos aos anúncios, os jogadores e mais concretamente os jogadores online/excessivos, eram mais suscetíveis de (lembrar) terem sido expostos a mensagens de prevenção em anúncios (56%), em comparação com 36% dos não jogadores. Contudo, a coerência entre a mensagem de prevenção e a publicidade nem sempre foi clara, tendo pouco mais de metade dos inquiridos sido expostos à mesma: uma intenção bem-vinda, mas cuja implementação ainda tem de ser otimizada.
Finalmente, a maioria dos inquiridos concordam que a regulamentação estatal é importante em relação à publicidade a jogos de fortuna ou azar (79%) e ofertas promocionais/bónus (72%). Este é particularmente o caso dos jogadores, que estão, em primeiro lugar envolvidos. No entanto, mais de metade deles (54%) sentem que, até à data, existe um quadro relativamente pouco desenvolvido sobre estes temas.
Em termos de atores, descobrimos que havia um desconhecimento dos organismos responsáveis pela regulação dos jogos de fortuna ou azar. Curiosamente, o ator mais frequentemente citado como legítimo para a prática é a FDJ, entendida como a autoridade de referência no setor, e portadora de uma voz institucional. Outros atores (Estado francês, mais raramente ARJEL ou CSA) são por vezes mencionados.
Em termos de medidas atualmente em vigor para regular este setor, seja na sua comunicação ou na sua ação, apenas duas são mencionadas de forma voluntária: a proibição do jogo para menores, e as menções obrigatórias às comunicações, No entanto, a primeira parece estar longe de ser sistemática, e a segunda longe de ser um verdadeiro incentivo.
Ainda assim, os inquiridos parecem ser a favor de uma maior eficácia da regulação do setor. Algumas áreas, contextos ou questões são mesmo consideradas particularmente criticas e apelam a uma vigilância mais robusta. As plataformas online são mais sensíveis e perigosas, uma vez que são consideradas muito menos controladas do que os canais mais tradicionais (televisão, ponto de venda, etc.) e ainda mais perto do ato de compra.
Os bónus e recompensas financeiras são vistos como muito mais incentivadores, e apelar a um maior rigor regulamentar.
As parcerias com influenciadores é uma prática cujo efeito de incentivo é difícil de estimar, mas o seu funcionamento atual permanece muito pouco claro para os jogadores (pagamento de influenciadores, montantes reais envolvidos, regulamentos, honestidade das declarações…).
Finalmente, os jovens são percebidos como sendo os mais vulneráveis (em particular os de risco moderado ou excessivo e parecem ser o principal alvo de da publicidade da indústria.
Fontes e Consultas: Autorité nationale des jeux (ANJ)