As salas VIP de Macau

Os casinos em todas as jurisdições de jogo têm de lidar com dois segmentos de jogadores: importantes (“jogadores VIP”) e jogadores regulares (“clientes do mercado de massas”). Os jogadores...
As salas VIP de Macau.

Os casinos em todas as jurisdições de jogo têm de lidar com dois segmentos de jogadores: importantes (“jogadores VIP”) e jogadores regulares (“clientes do mercado de massas”). Os jogadores VIP são preservados em alguns casinos em virtude dos montantes substanciais de dinheiro que estão dispostos a apostar, mas podem ser problemáticos pela volatilidade do desempenho, o risco de dívidas incobráveis e os custos envolvidos nas ofertas de restauração. Dependendo da jurisdição, os jogadores VIP podem exigir a reserva de quartos de hotel luxuosos e comodidades de alta qualidade para si e suas comitivas. Viaturas de luxo e outros “privilégios” que requerem apoio especializado  e um elevado volume de tempo e atenção da direção, amiúde em regime de exclusividade. 

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A abordagem de Macau em relação aos seus jogadores VIP é única, resultando numa situação onde efetivamente existem dois sistemas nos casinos da sua jurisdição: o sistema VIP e o sistema “mercado de massas”. Estes dois sistemas não só operam de forma diferente, como também são regidos por diferentes poderes sociais e económicos. Assim, para analisar ou prever a evolução da indústria dos casinos de Macau, os dois sistemas devem ser abordados separadamente.

O estilo operacional do sistema de mercado de massas da indústria dos casinos tradicionais de Macau não é muito diferente do que encontramos na generalidade dos casinos licenciados em qualquer jurisdição, mas esse não é o caso das suas salas VIP. Muitos dos elementos do sistema VIP de Macau podem ser encontrados em outros mercados de jogo, tais como “fichas mortas”, representantes de clientes, comissões para operadores “junket”, etc., mas apenas encontramos todas estas características reunidas na oferta de jogo VIP em Macau.

O objetivo deste relatório é analisar como as salas VIP emergiram e evoluíram enquanto principal fonte de receitas dos casinos de Macau desde a década de 1980, e como as práticas destas salas estão ameaçadas pela nova concorrência que surgiu em Macau desde a transferência de soberania de 1999, e a aprovação da nova lei de jogos de 2001.

Génese das salas VIP e dos casinos modernos em Macau.

No século XVI, Macau foi separada da China e tornou-se um importante centro de comércio entre a Europa e a China sob administração Portuguesa. Na época, a área de terra de Macau era de menos de 10 quilómetros quadrados e havia uma população de cerca de 40.000 pessoas. Macau era tão pequeno que não poderia ser autossuficiente, por isso teve que estabelecer laços económicos com áreas vizinhas. Muito antes de Hong Kong ser fundada, Macau serviu como entreposto comercial (China-Europa) e tornou-se a principal base económica para o enclave. Depois de 1847, quando a China cedeu Hong Kong aos britânicos, quase substituiu na totalidade Macau como porta de comércio internacional. 

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Macau teve que encontrar outras estratégias para sobreviver. Uma dessas estratégias era o jogo. O principal mercado de jogo era Hong Kong, bem como a vizinha Guangdong, província da China continental. Por outro lado, o governo Português de Macau tinha legalizado o jogo em 1840, e o governo britânico de Hong Kong tornou o jogo oficialmente ilegal na década de 1870. Este contexto proporcionou um mercado estável e confiável para a indústria dos casinos de Macau. Naquela época, o mercado de Hong Kong era grande e rico o suficiente para sustentar Macau. Assim, enquanto Hong Kong capturou o papel de Macau como um centro de comércio internacional e se tornou cada vez mais rica, Macau tornou-se de facto a sua “cidade do pecado”, a fim de sustentar a sua própria economia.

Ao longo de séculos Macau desenvolveu-se e cresceu territorialmente ao conquistar terra ao mar, massificando a imigração da China Continental. No século XX, com o crescendo da população macaense, tornou-se cada vez mais premente o crescimento da indústria de casinos para sustentar a sua base populacional, sendo assim vital atrair um maior número de jogadores do exterior. Porém, Macau, no século XX, não era um destino turístico atraente, não havendo deste modo muito potencial para expandir a indústria de casino e atrair clientes do mercado de massas, pelo que o maior foco de orientação estratégica foi inevitavelmente direcionado para o negócio das salas  VIP.

Até 2000, e já no novo milénio, os casinos da concessionária do monopólio em Macau, a STDM, sofriam de uma evidente escassez de investimento de capital e apresentavam diversas outras características físicas e operacionais como herança do monopólio das últimas quatro décadas. Em comparação com a generalidade dos casinos de qualquer outra jurisdição, a qualidade das instalações do casino e do casino-hotel em Macau, em 2000, era decepcionante. O emblemático casino-hotel O Lisboa – construído na década de 1970 – tinha apenas sido objeto de um reinvestimento e manutenção limitados durante as três décadas subsequentes. Os outros casinos operados pela STDM variavam entre a aparência sórdida e corriqueira.

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Toda a indústria de casino de Macau, a partir da transferência em 1999, aparentava pouco interesse no desenvolvimento de qualquer negócio do mercado de massas que já estava entrando à sua porta. Algumas práticas nas principais salas do casino, como concessionários que tomam “chá de dinheiro” e a atitude geral do staff  para com os clientes, também refletiu a falta de uma cultura orientada para o cliente. As slot-machines eram praticamente inexistentes nos casinos da STDM e as que existiam eram antiquadas e proveniente de um número limitado de fabricantes. A quota de mercado minúscula para slot-machines em Macau estava, pelo menos em parte, relacionada com a falta de interesse em disponibilizar máquinas de jogos de um mínimo de qualidade aos clientes da concessionária. Finalmente, os casinos de Macau, no final de 1990, sofriam com a presença visível de agiotas e prostitutas, e a indústria de casino foi alvo de batalhas intestinas entre tríades que disputavam o controlo das salas VIP lucrativas.

Com limitado interesse e capacidade em desenvolver uma indústria de casino atrativa aos turistas do mercado de massas, a ênfase da STDM foi ampliar o número de jogadores substanciais (o equivalente chinês de “high rollers”), o que mais tarde contribuiu para que se tornasse no centro do jogo das sala VIP. De permeio, novas técnicas de marketing de casino foram desenvolvidas, um pouco acidentalmente, por homens desempregados ou em situação economicamente frágil, que ao longo do tempo se tornaram um fator importante para a evolução da indústria do jogo em Macau. Em chinês, esses homens são chamados de Jin-Ke, onde “jin” significa literalmente “introdução” e “ke” significa “clientes”. Os Jin-Ke sairiam em busca de jogadores de cidades vizinhas com o objetivo de convidá-los para os casinos de Macau. Na segunda metade do século XX, como a indústria de casino de Macau cresceu, mais Jin-Ke foram necessários para trazer mais jogadores para Macau.

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Quando os primeiros Jin-Ke introduziram clientes no casino, foram pagos pelos casinos, mas as condições de pagamento não foram comercialmente fixadas. Aparentemente, os primeiros Jin-Ke não foram pagos com base no montante de dinheiro jogado pelos clientes que introduziram, nem pelo número de clientes introduzidos. No entanto, esta nova “carreira” foi um elemento institucional primitivo que precedeu o sistema contratual das salas VIP de hoje.

A súbita evolução deste sistema ocorreu em 1971 quando a STDM abriu o Casino Lisboa. O Lisboa criou um efeito “tenho que ver” que atraiu muito mais residentes de Hong Kong a visitar Macau por ferry e desfrutar das ofertas do novo casino. Os terminais de ferry em ambas as margens do Delta/Rio das Pérolas ficavam diariamente lotados e os lugares nas embarcações manifestamente escassos. Nos períodos de maior afluência, o preço em vigor dos bilhetes era substancialmente maior do que o valor facial, criando oportunidades para os “revendedores” de bilhetes. Isto atraiu “candongueiros” que se reuniam em ambos os terminais para inflacionar os preços dos bilhetes que um grande número de visitantes estava disposto a pagar (ou seja, os referidos “revendedores” compravam os bilhetes, na bilheteira, ao preço oficial e depois revendiam-nos aos passageiros a preços inflacionados). Obviamente, esta prática não era aceitável, quer para a empresa de ferry quer para o casino, ambos operados pela STDM. 

A solução veio a ser sugerida pela liderança da STDM, que convocou uma reunião com os “revendedores” de bilhetes e lhes ofereceu uma alternativa: Se estes cessassem as suas atividades especulativas e abandonassem os terminais de ferry, a STDM viabilizaria a sua atividade no interior dos casinos, o que acabaria por ser muito mais rentável do que o tráfico de bilhetes. O entendimento proposto foi aceite: deixaram os terminais de ferry e foram para os casinos. Entretanto, o chamado sistema de “fichas mortas” já tinha sido implementado pela STDM, de modo que os antigos “revendedores” de bilhetes foram convidados a envolver-se com o negócio da revenda de fichas mortas ou “rolamento de fichas” dentro dos casinos.

Como funciona o negócio das “fichas mortas” dento de um casino?

O revendedor de fichas mortas dirige-se a uma caixa especial do casino, que serve especificamente para as transações efetuadas com revendedores de fichas mortas, e compra uma determinada quantidade dessas fichas pelo valor facial.

A quantidade de fichas adquiridas pelo revendedor de fichas mortas é monitorizada para permitir que mais tarde receba uma comissão de, consideremos a titulo exemplificativo, 0,7 por cento do total das fichas compradas.

Estes 0,7 por cento são considerados como “taxa de comissão sobre fichas mortas”.

Com as fichas compradas no bolso, o revendedor circula pelo casino a fim de criar empatia, amizade, cumplicidade e confraternizar com importantes jogadores VIP. Muitas vezes, as mesas de bacará são os lugares privilegiados para atingir tal propósito.

O revendedor de fichas mortas, depois de localizar o seu cliente-alvo e estabelecer a referida “amizade”, ajuda-o prestando alguns serviços.

Em troca da “amizade”, o cliente concorda em comprar-lhe fichas mortas, a uma taxa de um-para-um (nula), em vez de comprar fichas regulares nas caixas do casino. Na verdade, isto faz pouca ou nenhuma diferença para o cliente, em virtude de a função das fichas mortas e das fichas regulares ser a mesma em mesas de bacará; as fichas mortas simplesmente não são reembolsáveis nas caixas do casino.

Por exemplo, um cliente tem um orçamento de jogo de um milhão de dólares de Hong Kong e compra essa quantidade de fichas mortas a um revendedor de fichas. O revendedor recebe HK $ 1 milhão do cliente e, mais tarde, receberá uma comissão de HK $ 7.000 para comprar as fichas de casino na caixa especial do casino, obtendo um ganho operacional (antes das despesas) de HK $ 7.000.

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Deve ter-se em consideração que não é fácil encontrar jogadores substanciais que estejam dispostos a ser “amigos de jogo”. Para a maioria dos revendedores de fichas mortas, não é usual angariar mais do que um ou dois jogadores por mês.  Se um revendedor de fichas pode fazer apenas HK $ 7,000 de cada jogador com quem fez amizade, não será um negócio muito rentável. No entanto, o revendedor de fichas mortas pode fazer muito mais do que isso.

Os jogadores podem fazer as suas apostas com fichas mortas ou fichas regulares mas, quando ganham, são sempre pagos em fichas regulares. A maioria dos jogadores não para de apostar após “lavar” as suas fichas mortas, ou seja, após convertê-las em fichas regulares através de ganhos. Ao invés, eles continuam a apostar normalmente com as suas fichas regulares recém-ganhas.

Quando o cliente recebe fichas regulares de ganhos de jogo é uma oportunidade para o revendedor de fichas mortas fazer consideravelmente mais dinheiro. Enquanto o cliente joga numa mesa de bacará, o revendedor de fichas mortas fica atento ao contexto envolvente. Quando o cliente esgota todas as suas fichas mortas e pretende continuar a jogar com as fichas regulares, o revendedor de fichas mortas propõe algo assim: “Amigo, por favor, não faça isso que eu tenho aqui para si fichas mortas. Troque as suas fichas regulares pelas minhas fichas mortas. Para si não faz qualquer diferença, mas faz alguma diferença para mim.” 

Se os padrões de ganha-e-perda continuarem, prolongando a sessão de jogo, o revendedor “rola as fichas mortas” e, como resultado, ganha mais dinheiro. No momento em que o cliente eventualmente perde para o casino todas as fichas mortas originalmente compradas ou termina o seu tempo na mesa, o revendedor de fichas  mortas pode ter lucrado consideravelmente com o jogo – uma parte considerável da compra original do cliente pode estar agora no bolso do revendedor de fichas  mortas.

O montante efetivo de dinheiro que o revendedor de fichas mortas faz depende de quantas vezes as fichas mortas “rolaram”, o que por sua vez depende da quantidade de rodadas de ganhar-e-perder no jogo. Se o cliente teve muito azar e perdeu todas as suas fichas mortas sem ganhar quaisquer fichas regulares, então o dinheiro feito pelo revendedor de fichas mortas com o cliente ficou limitado apenas à comissão sobre a compra de origem. 

Portanto, a quantidade de dinheiro que um revendedor de fichas mortas pode fazer não está apenas dependente do número e dos níveis de apostas dos clientes que ele pode encontrar e recrutar; mais importante é o modo como os jogos realmente progridem e quão bem sucedido é o “rolamento de fichas” durante o jogo.

Nos primeiros anos, o negócio de fichas mortas era basicamente um negócio que se desenrolava dentro dos casinos. No entanto, à medida que mais e mais empresários se tornaram revendedores de fichas mortas, a concorrência para “angariar amigos” tornou-se mais intensa e o sucesso tornou-se mais difícil de alcançar. Como resultado, os revendedores de fichas tiveram que viajar para outras cidades e países para “fazer amigos” e angariá-los para os casinos. Esse fenómeno alterou significativamente a natureza do negócio de fichas mortas e criou algumas novas questões para a indústria de casino de Macau.

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Com a evolução, os Jin-Ke estavam efetivamente a funcionar como agentes de marketing dos casinos, o que acabou por mudar a natureza da relação entre casinos e revendedores de fichas mortas. Nos primeiros anos, os casinos apenas os toleravam em troca do seu acordo em parar de especular com os bilhetes de ferry. De acordo com esta evolução do relacionamento, os casinos começaram a beneficiar cada vez mais com o novo negócio trazido pelos revendedores de fichas mortas, servindo estes como recrutadores de clientes.

Com o tempo, os custos e os riscos associados a “fazer amigos ” aumentaram, como resultado da necessidade de desenvolver esforços mais intensos de recrutamento. Os negociantes de fichas mortas tinham que pagar o transporte, alojamento e outras despesas aos seus clientes potenciais antes que pudessem realmente obter proveitos através das vendas de fichas mortas e rolamento de fichas. Além disso, tornava-se necessário estabelecer um mecanismo institucionalizado para reconhecer e proteger as relações entre recrutadores e recrutados, a fim de salvaguardá-los de eventuais expedientes oportunistas de outros revendedores de fichas mortas.

Uma vez iniciados os revendedores em ir para o exterior recrutar clientes, o mercado de fichas mortas expandiu-se substancialmente. Como resultado, o número de revendedores de fichas mortas acompanhou essa tendência expansionista, de um inicio de algumas dezenas, para um mercado onde operam vários milhares. A gestão da STDM encontrou cada vez mais dificuldades em lidar com a dispersão de revendedores independentes e, portanto, procurou alternativas para organizar e racionalizar essas transações. Com efeito, os revendedores de fichas mortas evoluíram a partir de Jin-Ke para “promotores VIP” do mercado em expansão.

Consultas/Referências

– Queensland University of Technology Law and Justice Journal;
– Rufus King, Gambling and Organized Crime;
– Jermone H Skolnick, ‘A Zoning Merit Model for Casino Gambling’ 474 American Academy of Political and Social Science 48-60

Saiba mais sobre este tema:

A Ricardina

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